MODERAÇÃO E SERENIDADE
Jornalista: Adriana Dias Lopes
29/11/2014 - Marco Bobbio, de 63
anos, dirige um dos centros de referência em cardiologia da Itália, o hospital
Santa Croce e Carie di Cuneo, no Piemonte. Ele se notabilizou entre os colegas
de todo o mundo por ter colocado na dimensão correta a atual obsessão pela
preservação da juventude a qualquer custo. Do pai, o filósofo Norberto Bobbio,
morto em 2004, um ícone do pensamento liberal e da defesa dos direitos
individuais, Marco herdou a inteligência e a ironia cortante com que postula
suas teses. "Meu pai dizia que o homem de cultura é aquele que valoriza a
dúvida. É o que faço diariamente exercendo a medicina."
Antes de embarcar para o Brasil,
onde lançará nesta semana o livro O Doente Imaginado, Marco Bobbio falou a
VEJA, por telefone, de sua casa em Turim.
A
medicina preventiva é um ramo com muitas histórias de sucesso para contar, mas
ainda não o convenceu totalmente. Por quê?
Há um exagero nas medidas que
visam a evitar o aparecimento das doenças. O médico deveria intervir menos e
esperar mais o curso natural das coisas. Acredito nas intervenções em situações
agudas, como no caso do paciente vítima de um infarto ou um derrame. Desconfio
um pouco das medidas de longo prazo. Os tratamentos da medicina moderna fazem
com que as pessoas vivam mais. Vive-se mais, mas não se vive tão bem. São
pouquíssimas as pessoas que chegam a uma idade avançada sem problemas. A vida se
prolongou. Mas o mal-estar associado ao envelhecimento também. Não há cura para
esse mal-estar. É o que chamo de "paradoxo da medicina". Vejo pessoas
com 85 ou 90 anos dizendo que estão cansadas. Elas estão mesmo, é idosas.
Como harmonizar sua tese com a
promessa da medicina de fazer pelo paciente tudo o que estiver ao alcance?
Os cuidados preventivos podem
levar uma pessoa até os 90 anos com o sistema cardiovascular funcionando muito
bem. Mas eles não eliminam por completo todos os problemas associados à idade
avançada, como a dificuldade de locomoção, a perda de memória, o cansaço. A
tecnologia dos exames e o aprimoramento dos medicamentos são dois dos muitos
recursos capazes de manter uma pessoa viva por muito mais tempo, mas ainda não
foi possível desenvolver mecanismos que possam proporcionar qualidade de vida
aos pacientes em idade avançada.
Uma mulher de 50 anos descobre no
check-up anual que tem um câncer de mama em fase muito inicial. Nessas
circunstâncias, a probabilidade de cura ultrapassa 90%. Sem medidas preventivas
ela estaria condenada, não?
O rastreamento do câncer de mama
é um dos poucos exames que têm provado sua eficácia preventiva. Nesse caso
hipotético, é inegável que a prevenção foi decisiva. O problema é quando os
médicos não respeitam os valores e as necessidades do paciente, acreditando que
o que eles oferecem é sempre o melhor. Não se pergunta nem mesmo o que o
paciente quer. Muitas vezes a questão é dar a ele o direito de não seguir um
determinado tratamento, se essa for a sua vontade.
Conhecer o risco de desenvolver
uma doença, por menor que ele seja, não ajuda o paciente a organizar a vida?
Isso seria verdadeiro se, ao
descobrirmos a doença, fôssemos capazes sempre de eliminá-la. Raramente é
possível mudar a história de uma doença, esse é o ponto. As dificuldades
começam pelos exames que identificam o problema. Os pacientes acreditam que os
exames dão sempre uma resposta definitiva. O tumor é benigno ou maligno? A
placa de gordura vai se expandir ou não? Todo e qualquer exame tem o chamado
resultado falso negativo ou falso positivo. No caso do falso negativo, o
paciente vai para casa tranquilo, quando, na verdade, pode ter mesmo um câncer.
Ou então. quando o exame confirma a doença, o paciente se submete a inúmeros
procedimentos invasivos e, possivelmente, a um procedimento mutilador. Há um
excesso de determinismo na prática da medicina atualmente.
Um em cada cinco exames, em
média, dá resultado falso positivo ou falso negativo. Esse número é altíssimo,
não?
A taxa de falsos positivos e
falsos negativos depende do tipo de exame, da forma como ele é aplicado e das
condições de sua realização. Uma regra para saber se vale a pena se submeter a
um exame de detecção precoce é conhecer os dados globais de sua eficácia. A mamografia
e a colonoscopia, que detecta o câncer colo retal, têm sua eficácia comprovada
por esse critério.
A expectativa dos pacientes em
relação à medicina é demasiadamente alta?
Sim, e essa postura é alimentada
pelos próprios médicos. Não é incomum ver profissionais renomados declarar para
revistas, jornais e televisão sua onipotência, divulgando feitos
extraordinários. Por exemplo, o cirurgião que recuperou um paciente em
condições desastrosas depois de uma operação de dez horas de duração. Claro que
isso pode acontecer. Mas não é o comum. Esse médico, então, passa a ser visto
como um salvador, quase um ente divino. Pode acontecer também de um paciente
morrer na mesa de cirurgia ao ser operado de apendicite. Também é incomum.
Excluindo-se aqui o erro médico, há o imprevisto, a fatalidade. O imponderável.
Saber lidar com isso é saudável porque faz o médico não se sentir Deus — e
errar menos. A medicina não é uma ciência exata. É uma ciência biológica que
tem de lidar com características muito particulares e complexas.
Qual o pecado mais evidente dos
médicos atualmente?
Os médicos estão muito
arrogantes, impondo seu ponto de vista a todo custo. Parte da culpa é das
sub-especializações médicas, um fenômeno recente na medicina. Elas são
necessárias para a compreensão mais aprofundada de uma doença, mas, quando o
médico se concentra em uma pequena porção de uma determinada afecção, passa a
ver o paciente de forma fragmentada. Os médicos atualmente só sabem falar de
questões referentes às suas subespecialidades. Não do paciente. A postura dos
especialistas é comparável à dos socialistas, para quem só há uma única solução
para um problema — ela é perfeita, e não tem discussão. Hoje em dia, exames e
tratamentos são determinados pelos estudos científicos, sem maiores reflexões.
Se um paciente sofre um infarto em São Paulo, em Nova York ou na índia, é
tratado basicamente da mesma forma. São, evidentemente, boas abordagens, mas
que funcionam bem com a média da população. Quando o paciente procura ajuda
médica, ele é um indivíduo, não uma média — é único. Parece chavão, mas pensar
assim faz uma diferença brutal. Cada paciente tem uma história que deve ser
levada em consideração. E isso implica, muitas vezes, não seguir as diretrizes
médicas. Há os que querem se submeter a tratamentos menos eficazes, mas menos
invasivos. Há os que simplesmente não querem prolongar a vida com má qualidade.
A decisão deve ser primordialmente do paciente. Sempre. E, quando ele não tem
mais condições de decidir sobre o fim da vida, cabe aos parentes fazê-lo.
No fim da vida, doente, seu pai,
o filósofo Norberto Bobbio, não foi submetido a nenhum tratamento
extraordinário. Foi uma decisão sua?
Em outubro de 2003, meu pai
completou 94 anos em condições bastante boas. Fisicamente ele estava um pouco
limitado. Já não saía de casa, conseguia, no máximo, caminhar do quarto para o
banheiro ou para a sala. Mas se locomovia sozinho. Festejamos o Natal daquele
ano em sua casa. Foi uma alegria. Dois dias depois, porém, ele pegou uma
pneumonia. Com dificuldade para respirar, teve de ir para o hospital. Lá, foi
tratado com antibióticos, antitérmicos e recebeu oxigênio. Recuperou-se e
retornou para casa. Em 06 de janeiro de 2004, li os jornais para ele, que
compreendeu tudo. No dia seguinte, piorou drasticamente. A febre voltou, seu
estado geral se agravou. Dessa vez teríamos de tomar a decisão se seria ou não
entubado e submetê-lo a alimentação artificial. Eu disse não. Pensei comigo:
até pouco tempo atrás ele teve uma vida maravilhosa. Mas, viúvo há três anos,
se sentia só e estava deprimido. Nos últimos meses, repetia com frequência a
expressão latina taedium vitae para
dizer que estava cansado da vida. A partir daquele momento, foi indo embora
devagarinho, apenas com o suporte médico para controlar o mal-estar causado
pela doença. Mesmo assim, quando o coração dele começou a bater mais fraco, as
enfermeiras me olharam aflitas e perguntaram o que deveriam fazer. Nada,
respondi. No dia 9 de janeiro ele se foi.
Como o médico pode saber com
segurança a hora de interromper o tratamento?
É muito difícil,
independentemente da situação do paciente. Trata-se sempre, repito, de uma
decisão que deve ser tomada com o paciente ou com seus parentes. Mas sempre
tento seguir a lógica de um movimento médico nascido na última década chamado
Slow Medicine, do qual faço parte. O lema é praticar uma medicina o menos
invasiva possível, que respeite a vontade do paciente.
Como o senhor cuida da própria
saúde?
Tomo um copo de vinho por
refeição, como muita verdura e consumo pouca carne, pouco sal e pouco açúcar.
Sei que o vinho faz bem ao coração, o excesso de carne aumenta o risco de
câncer de intestino, o sal está associado à pressão alta e o açúcar ao
diabetes. Mas não me escravizo por isso. Se vou à casa de amigos e lá há um
doce gostoso, como com muito prazer. Se o vinho é bom, bebo mais de duas taças,
claro. Faço caminhadas apenas quando posso. E sempre de forma prazerosa — em
meio às montanhas do Piemonte. Dou risada quando vejo as pessoas correndo em
esteira.
O senhor faz check-ups?
O único exame que já fiz na vida
foi o do sangue oculto nas fezes, para investigar possíveis lesões intestinais.
Esse é um dos poucos exames que de fato conseguem predizer a existência de uma
doença. Nem o PSA, o marcador para o câncer de próstata, eu fiz. Não é uma
forma tão eficaz de detecção quanto se pensava. Alguns institutos canadenses
excluíram recentemente a indicação desse exame, e espero que outros lugares
façam o mesmo. Não tomo remédios. Nunca fiz um exame de coração.
0 senhor não tem medo de ter um
infarto, para o qual pode estar caminhando sem sinais aparentes?
Claro que sim. Mas não vejo
vantagem em fazer um exame se me sinto muito bem. Tenho 63 anos e, certamente,
minhas artérias não são as de um garoto de 20. Sei que posso ter uma lesão. Sei
também que, seguramente, os exames e os procedimentos médicos não vão me
garantir uma sobrevivência serena. Prefiro viver sem saber. Em minha opinião,
não faz sentido eu me sentir bem e ir ao médico para tentar saber quando vou
estar mal.
0 que seus pacientes acham de
suas opiniões?
Os que discordam não voltam mais.
Posso lhe garantir que a maioria volta.
O que o senhor aconselha a quem
está bem de saúde e quer se conservar assim?
Tente levar uma vida serena. Não
tenha como objetivo chegar aos 70 anos com o mesmo vigor que tinha aos 50.
Desfrute a vida e não se prive de prazeres. Hoje, quando as pessoas se reúnem à
mesa com os amigos ou com a família, não dizem mais se gostam ou não de
determinado prato, mas se podem ou não comê-lo. Isso significa invariavelmente
comer mal. Deve-se comer um pouco de tudo. Inclusive quando se está doente.
Aqui os médicos pecam novamente. O paciente que sofreu um infarto vai ouvir da
maioria dos especialistas a recomendação de eliminar a gordura do prato. Eu não
concordo. Recomendo a meus pacientes que comam queijo, mas não um queijo
qualquer. Escolham um produto de excelente qualidade, mesmo que ele custe mais.
Toda noite se deliciem com um pedacinho dessa maravilha, deixando que ele
derreta na boca bem devagar. O mesmo vale para todo tipo de alimento, seja
salame, vinho, sal ou açúcar. Comam com moderação e vivam com serenidade. Não
existe receita melhor de saúde.