Nós, médicos brasileiros, somos a bola da vez, ou para usar
uma expressão das brincadeiras da nossa infância, estamos na berlinda. Segundo
o governo atual, que jogou as outras profissões da saúde e a população contra
nós, somos os responsáveis pelo caos da saúde pública brasileira porque não
queremos ir para o interior nem para as periferias, somos mercenários e
insensíveis, só pensamos nos altos salários e não estamos ligando nada para o
sofrimento do povo abandonado à míngua por uma classe elitista e insensível e,
ainda por cima, não queremos que os bondosos cubanos e outros altruístas
médicos estrangeiros venham ocupar as vagas que deixamos abertas.
Será que é esta a verdade? Mesmo os piores criminosos têm
direito de se defender, mas não é o que está acontecendo conosco. Estamos sendo
execrados em praça pública, sem direito a defesa, como mostram os últimos atos
do governo federal, ao vetar os pontos principais da lei do ato médico e ao
empurrar de goela abaixo da sociedade brasileira o famigerado programa “mais
médicos”.
Como dizia o esquartejador, vamos por partes.
1.
1. O veto à lei do ato médico
A presidente Dilma mostrou toda a sua veia democrática ao
vetar os pontos principais da lei do ato médico, principalmente o artigo que
caracterizava as atribuições exclusivas dos médicos, que são o diagnóstico
nosológico e a indicação terapêutica. Ela, movida por interesses eleitoreiros,
decidiu contra nós e deu a todos os outros profissionais de saúde, que não estudaram
para isto, a prerrogativa de diagnosticar e prescrever. Além disso, provou que
o congresso nacional não serve para nada. A lei do ato médico foi
exaustivamente discutida e acordada por 11 (onze) anos no congresso, mas a
presidente derrubou tudo com uma canetada – total desprezo pela democracia e
pelas instituições.
Os outros profissionais, deslumbrados com o “poder” que lhes
foi dado, não perceberam a armadilha em que caíram: transfere-se a
responsabilidade do ato médico para outros profissionais não capacitados para
isto, que responderão civil e penalmente pelos danos causados aos pacientes, e
o governo deixará a batata quente assando nas mãos deles. Foi um tiro no pé
dado pelos profissionais não médicos. E o pior: vai morrer gente por causa
disso...
Além disso, o governo criou insegurança legal no Brasil, ao
decidir contra todo o ordenamento jurídico nacional e internacional. Em todo o
mundo, o diagnóstico e a indicação terapêutica são prerrogativas médicas, mas o
governo brasileiro quis ser diferente e “moderno”. As entidades médicas já
recorreram à Justiça, mas não sei se vai adiantar. Quem viver, verá.
2.
2. O programa “mais médicos”
Mais uma vez, a presidente Dilma mostrou que os interesses
eleitorais superam tudo, inclusive toda a legislação trabalhista nacional e
internacional, da qual o Brasil é signatário, e que o PT, quando ainda tinha
alguma dignidade, tanto lutou para conseguir. A presidente Dilma também rasgou
a Constituição em vários pontos com este famigerado programa.
A convenção internacional das leis trabalhistas diz
claramente que o trabalhador tem que receber seu salário diretamente de seu
empregador, e não podem ser deduzidas, sob nenhum pretexto, quaisquer partes do
salário, por ninguém, a não ser as obrigações legais (contribuições sindical e
previdenciária, imposto de renda e outros). O governo brasileiro contratou
cubanos, mas vai pagar a OPAS,que repassará o dinheiro a Cuba, que pagará seus
médicos, depois de reter 50%. Isto significa que Cuba é aqui – viramos quintal
de Fidel Castro, já que as leis brasileiras não valem para estes trabalhadores,
apesar de estarem trabalhando no Brasil, atendendo a população brasileira,
pagos pelo governo brasileiro. Absurdo total! Ainda por cima, não há vínculo
empregatício, concurso público e nem estabilidade, o que fere frontalmente as
leis brasileiras, que o governo deveria ser o primeiro a cumprir.
Outro ponto escandaloso é a dispensa da revalidação dos
diplomas. Se eu, que me formei médico em universidade pública estadual e fiz
especialização em universidade pública federal, quiser trabalhar em qualquer
outro país, seja o Paraguai, Cuba, Portugal, Estados Unidos, Zimbabue, Serra
Leoa, China ou Dinamarca, tenho que revalidar meu diploma para exercer a
medicina em outro país. Porque esses médicos do programa mais médicos não
precisam de revalidação? Simples: porque a maioria dos médicos formados em Cuba
e na Bolívia, que são, na maioria, brasileiros que estudaram nesses países, e
que são milhares, simplesmente não consegue passar na prova de revalidação
brasileira, que não é mais difícil do que as provas de seleção para residência
médica no Brasil, tanto que os médicos brasileiros dão um banho. Nos últimos
anos, menos de 10% (dez por cento) dos candidatos formados no exterior consegue
passar no Revalida. E não podemos ser taxados de xenófobos: a maioria desses
médicos é de brasileiros que não conseguiram passar no vestibular para medicina
no Brasil. O problema é que a formação nesses lugares é péssima, sofrível, até.
E coitados dos brasileiros carentes, principalmente do Norte e do Nordeste, que
serão atendidos por esses “médicos”.
O programa “mais médicos” cria duas categorias de
profissionais e duas categorias de cidadãos. Uma de médicos livres para exercer
a medicina em todo o território nacional e outra que fica com atuação restrita
a uma área geográfica; a primeira tendo que provar sua capacidade técnica por
uma instituição brasileira ou tendo seu diploma revalidado, e a segunda que não
precisa provar nada. Isto é, antes de tudo, inconstitucional! Não pode haver
médicos de 1ª e médicos de 2ª classe! Espero que o STF cumpra o seu papel e
obrigue o governo federal a refazer tudo ou a acabar com este programa
vergonhoso.
E porque nós, médicos brasileiros, não queremos ir para o
interior e para as periferias? Por várias razões, que explicito a seguir:
1. Falta de estabilidade no emprego: a maioria
esmagadora dos contratos de médicos por esse Brasil afora é temporária, sem
nenhuma estabilidade. Já há notícias pipocando em todo o país que prefeitos
estão demitindo seus médicos para receber os bolseiros do “mais médicos”. O que
era para somar, vai apenas substituir, e no final fica a mesma coisa. O que
segura o médico e qualquer outro profissional no interior e nas periferias é
vínculo empregatício, com todos os direitos trabalhistas (férias, décimo
terceiro salário etc) e condições de trabalho dignas, além de um salário
decente. As raras prefeituras que oferecem concursos pagam tão pouco que não
vale a pena o esforço – recentemente, um concurso para médico de uma prefeitura
de Alagoas oferecia salário de R$ 980,00 (novecentos e oitenta reais) brutos,
por 20 horas semanais! Não merece nem ser comentado!
Uma reivindicação antiga da classe médica é
a carreira de estado para médicos, como existe para a Justiça, que funciona
bem: um juiz em início de carreira vai para as cidades mais distantes e, ao
acumular tempo de serviço, vai migrando para a capital ou outro grande centro
de sua escolha e vai assumindo cargos mais importantes; o mesmo pode ser
aplicado para os médicos e outros profissionais de saúde.
2. Falta de estrutura: a grande maioria dos
munícipios não oferece nenhuma condição de trabalho na saúde. Os postos de
saúde são, em geral, casas velhas, muitas vezes literalmente caindo aos
pedaços, sem medicamentos, sem insumos, sem exames mesmo os mais simples. O que
um médico vai fazer num lugar desses? Olhar e consolar as pessoas pela pobreza
em que vivem? E como um profissional pode se estabelecer numa cidade dessas,
levando sua família para morar em um lugar sem infraestrutura mínima? Que
escola o médico vai oferecer para seus filhos? Que opções de crescimento
profissional o médico tem no interior (cursos, simpósios, congressos etc)? Que
opções de lazer o médico e sua família têm nos fins de semana? O médico, para
exercer com dignidade seu ofício, precisa de estrutura mínima de atendimento e
referências regionais e ou estaduais para encaminhar os casos mais complicados,
o que não ocorre na maioria dos municípios brasileiros.
Espero em Deus que o bom senso prevaleça e as coisas voltem
para os seus devidos lugares; senão, a única saída honesta para nós será o
aeroporto...